sexta-feira, 23 de outubro de 2009

TEATRO

As primeiras manifestações teatrais importantes no Brasil ocorrem na transição do maneirismo para o barroco, e foram realizadas em âmbito religioso, como parte da obra missionária de catequização do gentio. Assim são as peças de José de Anchieta, o maior e praticamente únicodramaturgo do século XVI no Brasil, e sua produção se insere na concepção jesuíta de catequese cênica, sistematizada pelo padreFranciscus Lang em sua Dissertatio de actione scenica. Para formular seus preceitos Lang se baseou na tradição teatral italiana, nos antigosautos de mistérios medievais, e nas prescrições dos Exercícios Espirituais de Santo Inácio de Loiola, que previa a composição de lugar para melhor eficiência da meditação espiritual. No caso específico de Anchieta, o teatro de Gil Vicente foi outra referência importante.

Representação cênica moderna da Via Crucis diante da Matriz de Pirenópolis, nos mesmos moldes da antiga prática teatral barroca ao ar livre
Antônio Francisco Soares: Carro alegórico construído no Rio em 1786 para as festividades locais comemorativas do casamento dos Infantes de Portugal

Os enredos eram em geral retirados da Bíblia e da hagiografia católica, e a história da Paixão de Cristo ao longo da Via Sacra era dos mais importantes. As peças de Anchieta já evidenciam uma das características do teatro religioso do barroco que permaneceria ao longo dos séculos seguintes, osincretismo, com personagens retirados de vários períodos históricos e misturados a figuras lendárias. NoAuto de São Lourenço, por exemplo, aparecem juntos os imperadores romanos Décio e Valeriano, anjos, os santos Sebastião e Lourenço, uma velha, meninos e demônios indígenas, e nesta mistura fica desde logo claro o propósito de "relativizar o tempo e o espaço em função do referencial divino, que é eterno e absoluto. Diante de Deus todas as coisas são concomitantes e, apesar da existência de uma história da salvação, os verdadeiros valores não são históricos ou lineares" [24]. No século XVII a forma do teatro sacro se desenvolve, se enriquecem os cenários e acessórios cênicos, e o público-alvo já não é primariamente o índio, mas toda a população.

Ainda não havia teatros, e o local para tais representações era usualmente ao ar livre, nas praças diante das igrejas, ou ao longo das procissões, com o auxílio de cenários móveis instalados em cima de carros alegóricos que acompanhavam o percurso. A encenação contava com a viva participação popular, num movimento integrado entre atores e público, e muitas vezes se fazia uso de marionetes ou imagens sacras de um tipo especial, as estátuas de roca, vestidas como pessoas e articuladas de modo a poderem se adaptar à ação que se desenrolava, e onde desempenhavam um papel evocativo fundamental [25]. Era nessas ocasiões em que o barroco revelava toda a sua força aglutinadora, sua energia extravasante e o poder de seu encantamento:

"Então toda a cidade se move. As imagens desfilam solenes, refletindo as cores de suas tintas, vernizes, pedrarias e tecidos luxuosos, entre massas de velas e rolos da névoa perfumada exalada pelos turíbulos. A multidão adquire forma, organizada na hierarquia de suas funções, lustre e condição social. À frente, os representantes do Rei e da Igreja com suas insígnias e trajes de gala, seguidos dos militares em armaduras, as irmandades e confrarias com seus ícones e estandartes, e a escravaria agregada sob a efígie da Santa Misericórdia. Todos na mesma cadência, marcada pelos coros polifônicos e pelos clamores da fé, gritos, vivas, lágrimas e confissões espontâneas de pecados e vícios inimagináveis. (...)
"À noite se davam as encenações teatrais, recitações, cantos, danças e mascaradas. As coreografias formais dos minuetos e contra-danças nos salões extravasavam para as mouriscas e lundus nas varandas e dali para os congos, batuques e cucumbis nos quintais e terreiros. As danças noturnas se encarregavam assim de dissolver as rígidas segregações hierárquicas longamente ritualizadas durante o dia, reembaralhando as cartas ao acaso dos destinos individuais. Na vertigem dos rodopios e requebros, cada um incorpora o eixo em torno do qual gira o mundo, se lançando ao imprevisto das contingências guiado apenas pela verdade profunda da fantasia" [26].

Ao lado das manifestações sacras, as representações profanas tinham lugar nos festejos públicos oficiais ou populares, que se acompanhavam de cortejos, música e dança, e no entretenimento privado, onde os marionetes eram de uso freqüente e o improviso uma praxe. Salvador foi o primeiro palco desse teatro profano, e logo outros centros como o Rio e Minas também assinalam sua ocorrência. O teatro profano erudito só começaria a aparecer com a construção a partir do século XVIII de diversas casas de espetáculo pelo litoral e em alguns centros interioranos como Ouro Preto e Mariana, que serviam principalmente à representação de peças musicadas, as óperas, melodramas e comédias, e surgiu o desejo de profissionalização do teatro brasileiro, até então de base amadora e popular, e os tablados itinerantes deram lugar ao auditório fixo. O repertório era basicamente importado da Europa, com obras de Molière, Corneille, Voltaire, e as sátiras musicadas de António José da Silva, o Judeu, tiveram enorme popularidade.

Dos teatros barrocos brasileiros o mais antigo ainda existente é a Casa de Ópera de Ouro Preto, de 1770, que é também o mais antigo das Américas ainda em uso. No Rio há registro de teatros mais antigos, como a Casa de Ópera do Padre Boaventura, erguida possivelmente em1747, mas esta não sobreviveu. Contudo os relatos descrevem a riqueza de seus cenários e figurinos, o uso de títeres, e seus complexos maquinismos cênicos, um equipamento essencial à criação dos efeitos especiais tão apreciados na encenação barroca. O próprio padre Boaventura regia os espetáculos. Um outro teatro foi erguido no Rio por volta de 1755, o Teatro de Manoel Luiz; nele se assinala a atividade de um dos primeiros cenógrafos profissionais do Brasil, Francisco Muzzi, e um repertório com peças de Molière, Goldoni, Metastasio, Maffei,Alvarenga Peixoto e especialmente as peças do Judeu. Funcionou até a chegada da família real portuguesa ao Brasil [27].

A herança cênica do barroco perdura até os dias de hoje em expressões populares sincréticas de longa e rica tradição que sobrevivem em diversos pontos do país, como as ladainhas, os congados, os ternos de Reis, e mesmo é visível no moderno carnaval carioca, uma festa associada ao calendário religioso e uma das expressões populares contemporâneas que atualizam a cenografia luxuriante do auge do teatro e das festas barrocas.


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