sexta-feira, 23 de outubro de 2009

RELIGIOSIDADE

Assim como em outras partes do mundo onde existiu, o barroco foi no Brasil um estilo movido pela inspiração religiosa, mas ao mesmo tempo de enorme ênfase na sensorialidade e na opulência dos materiais e formas, num acordo tácito e ambíguo entre glória espiritual e êxtase carnal. Este pacto, quando as condições permitiram, criou algumas obras de arte de enorme complexidade formal, que faz-nos admirar a perícia do artesão e a inventividade do projetista - amiúde anônimos. Basta uma entrada num dos templos principais do barroco brasileiro, seja em Minas, seja em Salvador, para os olhos de pronto se perderem num quebra-cabeças de formas e cores, onde as imagens dos santos são emolduradas por esplendores, cariátides, anjos, guirlandas, colunas e entalhes em volume tal que não deixam um palmo quadrado de espaço à vista sem intervenção decorativa, num luxo prodigamente materialista onde foi gasto muito ouro. Como disse Germain Bazin, ”para o homem deste tempo, tudo é espetáculo" [5].

Igreja de São Francisco, Salvador
Capela de N. S. das Dores, Matriz de Santo Antônio, Recife, com bilhetes e ex-votos deixados pelos fiéis

Entenda-se isso na perspectiva geral da época, quando o religioso educava a alma da sua ovelha em direção à apreciação das virtudes abstratas buscando seduzí-la antes pelos sentidos materiais, especialmente através da beleza das formas. Mas tanta riqueza também era um tributo devido a Deus, por Sua própria glória. Apesar da denúncia do luxo excessivo pelos Reformistas, e da recomendação de austeridade pelo Concílio de Trento, o catolicismo na prática ignorou as restrições, pois compreendia que "a arte pode seduzir a alma, perturbá-la e encantá-la nas profundezas não percebidas pela razão; que isso se faça em benefício da fé"' [6].

Esse cenário luxuriante era parte da própria essência da catequese católica durante o barroco, largamente influenciada pelos preceitos jesuíticos. A retórica barroca, base para todo o ensino, tinha um sentido cenográfico e declamatório, e se expressava cheia de hipérboles e outras figuras de linguagem, num discurso de largo vôo e minuciosa argumentação, às vezes até excessiva para o gosto moderno. Tal característica se traduziu plasticamente na extrema complexidade da obra de talha e na agitada e convoluta movimentação das formas estatuárias e arquiteturais das igrejas barrocas em todos os países onde o estilo prosperou, pois era uma faceta básica do prolixo espírito da época expressa visualmente, e que no Brasil se manifestou do mesmo modo, como não poderia deixar de fazê-lo.

Além da beleza de formas o catolicismo durante o barroco se valeu com ênfase do aspecto devocional, e o amor e a compaixão eram visualmente estimulados pela representação dos momentos mais dramáticos de cada história sagrada, e assim abundam os Cristos açoitados, as Virgens com o coração trespassado de facas, os crucifixos sanguinolentos, as patéticas imagens de roca articuladas e com cabelos e vestes reais que se levavam em procissões solenes e feéricas onde não faltavam as lágrimas e os pecados eram confessados em alta voz. Mas essa mesma devoção, que tantas vezes adorou o trágico, plasmou também inúmeras cenas de êxtase e visões celestes, e outras tantas Madonnas de graça ingênua e juvenil e encanto perene, e doces Meninos Jesus, cujo apelo ao coração simples do povo era imediato e sumamente efetivo. Novamente Bazin capta a essência do processo dizendo que "a religião foi o grande princípio de unidade no Brasil. Ela impôs às diversas raças aqui misturadas, trazendo cada uma um universo psíquico diferente, um mundo de representações mentais básico, que facilmente se superpôs ao mundo pagão, no caso dos índios e dos negros, através da hagiografia, tão adequada para abrir caminho ao cristianismo aos oriundos do politeísmo" [7].

A religião tinha enorme poder. Na Europa a Igreja Católica foi, ao lado das cortes, a maior mecenas de arte neste período. Nesta imensa colônia não havia corte, a administração local era confusa e morosa, assim um vasto espaço estava vago para a ação da Igreja e seus batalhões de intrépidos, capazes e empreendedores missionários de várias ordens, que administravam além dos ofícios divinos uma série de serviços civis como os registros de nascimento e óbito, estavam na vanguarda da conquista do interior do território servindo como pacificadores dos povos indígenas e fundando novas povoações, organizavam boa parte do espaço urbano no litoral e dominavam o ensino e a assistência social mantendo muitos colégios e orfanatos, hospitais e asilos.

No Brasil, então, quase toda arte barroca é arte religiosa. A profusão de igrejas e escassez de palácios o prova. Gradativamente haveria um deslocamento neste equilíbrio em direção a uma laicização, mas não chegaria a se completar no período de vigência do barroco. Construindo grandes templos decorados com luxo, encomendando peças musicais para o culto e dinamizando imensamente o ambiente cultural como um todo, e é claro ditando as regras na temática e na maneira de representação dos personagens do Cristianismo, a Igreja centralizou a arte colonial brasileira, com rara expressão profana notável.

As instituições leigas começariam a ter um peso maior por volta do século XVIII, com a multiplicação de demandas e instâncias administrativas na colônia que se desenvolvia, mas não chegaram a constituir um grande mercado para os artistas, não houve tempo. A administração civil ganharia força com a chegada da corte portuguesa em 1808, que transformou o perfil institucional do território, mas impediu uma continuidade do barroco pelo seu apoio declarado ao estilo neoclássico.

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